11.7.12

Álgido

Essa noite eles viram neve descendo do céu. O reflexo tênue das luzes dos poucos postes pela rua quase fizeram os flocos parecerem estrelas. Angaraka, a estrela-vermelha da guerra, olhava pra eles de longe, encaixada em sua órbita, tendo como companhias de sempre Medo e Pânico - os dois filhos queridos; na Terra, dois filhos de algo-nenhum sentiam o corpo gelar, a pele ardia, as roupas finas e rasgadas não protegiam do vento e os olhos lacrimejaram ao mesmo tempo, uma harmonia desesperançada orquestrada pelo choro quase inaudível e o tremor de toda a carne.
Quando os olhos se abriram, a cidade estava coberta de branco. Nada se via além de quatro passos pra qualquer lado que se fosse. A rua que anoiteceu deserta amanheceu igual. O silêncio ainda deixava escutar os ventos, e os ventos levaram pros ouvidos dos que se arriscaram a sair de casa os lamentos de duas almas infelizes. O solo recebeu os pés descalços e machucados carinhosamente, assim como receberia os dois corpos tempos mais tarde. Do céu, quem os observava agora era a estrela d'Alva do amor, acompanhada de perto por Neith.
Ela e ele se entreolharam por uma fração bastante longa de tempo (bastante longa, exatamente assim, sem clareza nenhuma). As mãos seguraram-se firmemente, uma força maior que a fome que contorcia suas entranhas. O mundo ao redor agora se exibia, mil vitrines com roupas e calçados e jóias e perfumes e eletrodomésticos pra sociedade comprar e achar que alcançou a felicidade plena. Outros mil restaurantes com tantos quilos de animais mortos pra sociedade se deliciar. Moças ditas bonitas dançavam na televisão com moços ditos bonitos, e a vida parecia sempre tão boa e justa no comercial daquele apartamento... Tudo isso parecia tão espetacular.



O espetáculo praqueles dois, entretanto, não era isso tudo. Nunca foi.

Era a cidade coberta de neve e era o frio. Eram Medo e Pânico andando de mãos dadas, acompanhando apressados os passos do pai Angaraka. Era estrela d'Alva surgindo no céu antes do Sol, trazendo no colo Neith. Era a troca de olhares que inexplicavelmente levou embora toda a desesperança e toda a tristeza, e as mãos unidas que fizeram esquecer toda a fome.




E a invisibilidade do casal foi embora quando o botão da câmera do fotógrafo da grande mídia impressa controlada pelos grandes fez clic. Ele quis fazer daquele momento a capa de todos os jornais do dia, e tanto insistiu que os grandes o demitiram. Demitiram ele porque a sensibilidade não serve nem para os ratos. 


(E os raros?)







Álgido vem do latim Algidus: "o que está frio".
Angaraka é o nome dado à Marte na Babilônia. Significa "coração ardente".
Medo e Pânico vêm do grego Phobos e Deimos, os nomes das duas luas de Marte.
Estrela d'Alva é o nome popular de Vênus.
A lua de Vênus chama-se Neith - a deusa egípcia dos céus.
A Sociedade do Espetáculo é um livro.
Os raros vêm d'outro livro: O Lobo da Estepe.

2 comentários:

Anônimo disse...

Você é fascinante.

Anônimo disse...

O Lobo da estepe é um ótimo livro escrito em tempos sombrios... Bom texto!

L!