17.3.21

 tem vezes que eu olho no espelho e ele me devolve um portal inteiro
retrato da minha cabeça rimando com o que tem aqui fora, tu vês
três cadeiras vazias, dois cães dormindo
tentei contar janelas e portas mas são tantas
da casa do espaço do corpo da alma de estudo do segredo da mente do peito do tempo do mistério

quando eu era criança inventava universos novos pelas fendas das paredes
nos azulejos trincados do piso
na rachadura daquela caneca amarela que meu tio me deu uma vez
que era pra tomar sopa de feijão
enquanto lá fora o inverno chegava nos ossos e a gente pensava "será que a mãe vai me deixar faltar na aula amanhã?"

eu procurava esses universos e eles me encontravam e a gente ficava ali se encarando

ano passado na primeira semana de isolamento eu achei uma rachadura na parede bem na frente da cama
foi de lá que vi uma menina que procurava universos, e ela foi meu universo nessa vez e tantas outras
será que ela sabia que seria ela mesma um universo na fenda da parede?

minha melhor amiga das primeiras séries da escola queria ser astronauta
a gente passava o recreio na biblioteca, eu lendo e ela desenhando foguetes
hoje eu olho pras pessoas pensando "será que essa pessoa vai me deixar viajar com minha nave espacial nesse universo que é ela e que é só dela, todinho dela, que será que ela vai me mostrar desse universo todinho dela?"

cê acredita em fenda de espaço-tempo?
faz uns anos eu tenho a sensação de que tudo, tudo, tudo, tudo é eterno e se interfere infinitamente

lê aí aquele poema do Arnaldo Antunes 
"o buraco do espelho está fechado"




O buraco do espelho está fechado
Agora eu tenho que ficar aqui
Com um olho aberto, outro acordado
No lado de lá onde eu caí

Pro lado de cá não tem acesso
Mesmo que me chamem pelo nome
Mesmo que admitam meu regresso
Toda vez que eu vou a porta some

A janela some na parede
A palavra de água se dissolve
Na palavra sede, a boca cede
Antes de falar, e não se ouve

Já tentei dormir a noite inteira
Quatro, cinco, seis da madrugada
Vou ficar ali nessa cadeira
Uma orelha alerta, outra ligada

O buraco do espelho está fechado
Agora eu tenho que ficar agora
Fui pelo abandono abandonado
Aqui dentro do lado de fora