16.12.10

Ainda lembro

A massa polar atlântica vai durar até terça-feira, e então acontece o solstício de verão - eu sei por causa da Geografia e do calendário que está sempre em cima da mesa. Até agora não deram permissão pro céu voltar ao azul original dele. Azul, assim, igual os olhos com pés-de-galinha do bisavô.
O biso às vezes roncava alto e nunca reclamava das coisas, vivia me esperando na porta com aquele sorriso tão e tão lindo no rosto (sorriso bonito de índio que nunca usou dentadura), os óculos na ponta do nariz, o cabelo com quase todos os fios brancos e macio que mais parecia algodão, e gostava de cafuné. Ia levando consigo a idade com número grande, andava arrastando os pés, um passinho lento, e um rádio pequeno na mão, frágil igual a ele.
E a bisa sempre muito ajeitada e perfumada, sentava-se no sofá e pedia que escovassem seu cabelo, que não era comprido, era bem curtinho. E eu o fazia, mesmo quando ela não pedia, porque eu gostava de ficar perto dela. Ela era linda, bordava toalhinhas e fazia casacos de lã para a família, e reunia a gente no Natal e no Ano-Novo.
Quando a bisa ficou muito doente e morreu eu gritei de tristeza, ecoou pelo apartamento que eu morava e sei que fez eco até o Parque de Exposições, de tão triste que era. Eu imaginava as pessoas que morreram caminhando por nuvens em chamas, porque a tia Odete me disse, quando eu perguntei do tio Otomar, que ele era bombeiro e que foi resolver alguns problemas no céu. Não entendia direito esse negócio de morrer, só sabia que ela não ficaria mais comigo; e sabia que era triste, porque quando o biso escutava a oração no rádio, ele chorava de saudade como quando a gente chora se perde um amor.
Eu e o biso sentávamos pra assistir Chaves e Chapolin na TV, ficávamos abraçados a tarde inteira, dando risadas bem juntinhos, a barriga de um tremendo encostada na barriga do outro, que também tremia. Quando o dia escurecia ele colocava no canal que passava as notícias e dava "boa noite" pro apresentador. Nos intervalos ele prestava atenção no sorteio do carnê que pagava fielmente, uma vez até xingou o moço de "mentiroso" porque ele falava que "hoje pode ser o seu dia de sorte!", mas o dia de sorte do biso nunca chegava.
Quando o biso morreu eu já começava a entender esse negócio de dizer adeus. Os bens foram partilhados entre filhos e netos, na minha casa veio parar a mesa grande das jantas festivas, alguns cobertores e um guarda-roupas, e o cheiro de naftalina tirou disso tudo o cheiro do biso e da bisa.
Mas quando eu passo a mão no meu cabelo e sinto a mesma textura do cabelo deles, quando às vezes abro o potinho que tem o cheiro da bisa, quando caminho de chinelos pela casa e eles fazem os barulhos que o biso fazia quando caminhava, sei que eles nunca me deixaram, sei que eles não estão mais no mundo, mas estão em mim.