9.11.21

Lambendo nuvem

Às vezes eu tenho a sensação de que a gente passou dias perambulando demais por esses caminhos de areias e pedrinhas já muito gastas de tão pisadas.

Sabe, naquele dia que a gente sentou na grama bem na beira do rio, e viu a água correndo e correndo e correndo, eu sinto que foi nesse dia que eu puxei um fio dentro de mim que soltou uma rolha presa forte demais no meu peito.

A gente se olhou no momento em que aquela nuvem roxa manchou o céu gostosamente de sorvete de uva, escorrendo ouro ensolarado pelos cantos... E essa memória faz morada no meu olho esquerdo bem profundamente. Foi do meu olho direito que o desarrolhar do peito sucedeu. A gente se olhou, e do meu olho direito eu chorei escorrendo pelo rosto todo o laranja do céu que a nuvem roxa manchou.


Sorver
Sorver o céu feito laranja
escorrido em lágrima no rosto
Derramado assim por causa da mancha
da nuvem roxa no céu


Ali na beira do rio
corredeira de água folha peixe
Espalhando raio de Sol
(o gosto das lágrimas nas línguas)


Desarrolhando o peito pra sentir
a gente ali sem perambular demais

11.4.21

vi árvores a derramar suas flores pra ninguém
tô zen no meu momento, Coltrane anti-jazz
crianças têm o céu no alcance das mãos
irmão, será que há tempo de poder ser mais?

eu sei, caramba, nem estrelas são iguais
tem mais: vitória agora é uma fresta de sol
no fim das conta, Tetsuo é quem tinha razão
então todas areias da ampulheta vão 
(É tudo pra ontem - Emicida e Gilberto Gil)


Celebrando cada tempo de poder ser mais vivendo esse tempo tão ruim. Aqui tem sido tudo na base do cuidado de si e do coletivo, no afeto que move, na esperança que não espera, na raiva canalizada pra mudança, no amor como revolução real, e isso há tanto tempo mas dessa vez um pouco difícil (porque eita que saudade de morar em vários abraços).

Essa foto me faz pensar na distinção entre uma árvore e uma nuvem, só que se parecem na impermanência. E vou atravessando o teto da casa, a copa da árvore, o infinito do céu...

Nada nesse mundo é meu de verdade, mas gosto de pensar que toda manhã o olhar dessa árvore pousa no meu que também olho pra ela e a gente fica assim se pertencendo por um momento.

E a areia da ampulheta vai... 

⏳ 🌸 ☁




17.3.21

 tem vezes que eu olho no espelho e ele me devolve um portal inteiro
retrato da minha cabeça rimando com o que tem aqui fora, tu vês
três cadeiras vazias, dois cães dormindo
tentei contar janelas e portas mas são tantas
da casa do espaço do corpo da alma de estudo do segredo da mente do peito do tempo do mistério

quando eu era criança inventava universos novos pelas fendas das paredes
nos azulejos trincados do piso
na rachadura daquela caneca amarela que meu tio me deu uma vez
que era pra tomar sopa de feijão
enquanto lá fora o inverno chegava nos ossos e a gente pensava "será que a mãe vai me deixar faltar na aula amanhã?"

eu procurava esses universos e eles me encontravam e a gente ficava ali se encarando

ano passado na primeira semana de isolamento eu achei uma rachadura na parede bem na frente da cama
foi de lá que vi uma menina que procurava universos, e ela foi meu universo nessa vez e tantas outras
será que ela sabia que seria ela mesma um universo na fenda da parede?

minha melhor amiga das primeiras séries da escola queria ser astronauta
a gente passava o recreio na biblioteca, eu lendo e ela desenhando foguetes
hoje eu olho pras pessoas pensando "será que essa pessoa vai me deixar viajar com minha nave espacial nesse universo que é ela e que é só dela, todinho dela, que será que ela vai me mostrar desse universo todinho dela?"

cê acredita em fenda de espaço-tempo?
faz uns anos eu tenho a sensação de que tudo, tudo, tudo, tudo é eterno e se interfere infinitamente

lê aí aquele poema do Arnaldo Antunes 
"o buraco do espelho está fechado"




O buraco do espelho está fechado
Agora eu tenho que ficar aqui
Com um olho aberto, outro acordado
No lado de lá onde eu caí

Pro lado de cá não tem acesso
Mesmo que me chamem pelo nome
Mesmo que admitam meu regresso
Toda vez que eu vou a porta some

A janela some na parede
A palavra de água se dissolve
Na palavra sede, a boca cede
Antes de falar, e não se ouve

Já tentei dormir a noite inteira
Quatro, cinco, seis da madrugada
Vou ficar ali nessa cadeira
Uma orelha alerta, outra ligada

O buraco do espelho está fechado
Agora eu tenho que ficar agora
Fui pelo abandono abandonado
Aqui dentro do lado de fora