tem vezes que eu olho no espelho e ele me devolve um portal inteiro
retrato da minha cabeça rimando com o que tem aqui fora, tu vês
três cadeiras vazias, dois cães dormindo
tentei contar janelas e portas mas são tantas
da casa do espaço do corpo da alma de estudo do segredo da mente do peito do tempo do mistério
quando eu era criança inventava universos novos pelas fendas das paredes
nos azulejos trincados do piso
na rachadura daquela caneca amarela que meu tio me deu uma vez
que era pra tomar sopa de feijão
enquanto lá fora o inverno chegava nos ossos e a gente pensava "será que a mãe vai me deixar faltar na aula amanhã?"
eu procurava esses universos e eles me encontravam e a gente ficava ali se encarando
ano passado na primeira semana de isolamento eu achei uma rachadura na parede bem na frente da cama
foi de lá que vi uma menina que procurava universos, e ela foi meu universo nessa vez e tantas outras
será que ela sabia que seria ela mesma um universo na fenda da parede?
minha melhor amiga das primeiras séries da escola queria ser astronauta
a gente passava o recreio na biblioteca, eu lendo e ela desenhando foguetes
hoje eu olho pras pessoas pensando "será que essa pessoa vai me deixar viajar com minha nave espacial nesse universo que é ela e que é só dela, todinho dela, que será que ela vai me mostrar desse universo todinho dela?"
cê acredita em fenda de espaço-tempo?
faz uns anos eu tenho a sensação de que tudo, tudo, tudo, tudo é eterno e se interfere infinitamente
lê aí aquele poema do Arnaldo Antunes
"o buraco do espelho está fechado"
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