6.6.12

O abrigo da loucura


Revirou-se na cama desajeitada, o torso enrolado em lençóis roxos. Já há meia hora ele estava acordado mas não queria levantar, mergulhado nos braços da Deusa Preguiça, que acariciava gentilmente os cabelos muito negros, mas sem vida. Olhou pela rachadura no vidro da janela, o vento uivando feroz lá pra fora, e contrariado decidiu sair de casa. Há quanto tempo exatamente ele não saía daquela caixa? Ele não gostaria de saber, mas ficou curioso, porque de fato parece um pouco estranho estar perdido no tempo.
O chão, gelado do inverno, recebeu os pés quentes saídos debaixo das cobertas e o choque térmico provocou um “Ai” sussurrado. A própria voz rouca o assustou. Passou do quarto à cozinha em três passos largos, e agora tremendo de frio fez um café fraco pra que a Deusa Preguiça o deixasse sozinho em casa, como sempre foi, e ela beijou-lhe a face sem cor e sorriu pros olhos azuis rodeados pelas olheiras macabras, dizendo “Tchau, moço bonito”. Ele entornou o resto do líquido sujo goela abaixo e fez uma careta de nojo, “Mas que vida”, ele pensou consigo, o pensamento também rouco, “Mas que vida terrível”. Abriu a porta que rangeu queixosa e ao fechar reparou na tinta verde bizarra descascando e acumulando-se na soleira. Do outro lado da rua, um gato preto e pançudo atenciosamente seguiu seus passos até o fim da ruela, o corpo sumindo na avenida principal entre os montes de luzes.
E as luzes o deixaram cego por alguns instantes, a pupila dilatada recolheu-se violentamente dentro do azul. Recuperando-se, caminhou algumas centenas de metros à esquerda, deixando as pernas magras guiarem, sem reparar que aproximava-se do cume gigantesco - o maior da cidade -, em seu topo a velha mansão da família. Mamãe o mataria se o visse daquele jeito, esfarrapado, emagrecido, adoentado e um tanto ensandecido, ela o mataria, sim, senhor, se não tivesse sido morta há alguns anos pela própria irmã mais nova; e seu pai certamente o olharia daquele jeito meio torto, aquele velho corcunda incapaz de demonstrar afeto, sempre falando sozinho, os olhos de olhar torto girando nas órbitas enquanto ele dormia e sonhava com sabe-se lá que tipo de demônio.
Quando chegou ao topo do morro, ofegante, sentindo o suor escorrer desde as têmporas ao queixo e até mesmo atrás dos joelhos aos calcanhares, viu a cidade embaixo fervendo, cigarros acesos a cada esquina, cada quadra recheada de lojas, cada loja preenchida dessas coisas tolas que ele não desejava ter por perto. Foi-se chegando à casa, sentindo na boca desde os primeiros degraus da escada de pedra aquele gosto de chá de canela muito doce, misturando-se aos sons dos risos dos primos aos sábados, e o cheiro da pólvora que escapou da arma quando titia puxou o gatilho com o cano encostado na cabeça da mamãe. A lembrança do sangue derramado dos miolos pelo piso de linóleo quadriculado preto-e-branco esvaneceu assim que ele chegou à porta enorme da entrada, os trincos de ferro avermelhados de oxidação e o olho-mágico em caleidoscópio encaixado na altura da garganta, e lá dentro o chão carcomido pelos cupins insaciáveis estralou.
A porta abriu lenta e deixou ver o hall de entrada, no centro uma única lâmpada do lustre arcaico insistia em brilhar, bruxuleante. Além do buraco no chão provocado pelos cupins, nada mais se notava por ali, e ele entrou, os sentidos cada vez mais cheios do gosto, do som e do cheiro de antes. Chegando ao centro do cômodo, logo abaixo do lustre, a lâmpada estourou e o vidro caiu quente no braço descoberto. Logo o sangue pingou pelo corte pequeno e, outra vez, o chão estralou.
E então, uma voz e um susto. Não o tipo de susto que se dá quando alguém espera ao lado da porta e berra, e então há risadas, ou o tipo de susto que acontece quando se pensa que no final da escada tem um degrau que na verdade não tem, e pisa em falso. Assustado porque no ouvido direito uma voz sufocada e estridente falou aos prantos “Meu filhinho, cabelos negros, olhe só o que fizeram comig...” e a explosão da bala estourou seu tímpano, provocando no fim um som agudo que o estonteou, e ele berrou o nome da mãe no meio da sala vazia, o berro ecoando pelas paredes, alcançando a sala de jantar que ficava ao fundo da entrada, em linha reta, e subindo a escada em caracol que ia dar nos quartos. Passou a mão pela orelha que sangrava e mal pode conter os lamúrios de dor.
Da sala de jantar, titia veio correndo e sorrindo, o vestido amarelo de sempre balançando nos joelhos, os cabelos loiros presos em tranças. Segurou firme a mão dele, “Meu Deus, como tu estás gelada!” ele exclamou, e ela riu, mostrando os dentes sujos de terra. Foi puxando ele até a sala de jantar, e dali até a porta de saída em uma varanda voltada pro jardim, agora completamente cinza. Perto de uma árvore ressecada que antigamente abasteceria as tigelas de barro da cozinha com frutas pequenas, vermelhas e azedas, uma figura encurvada coçava a orelha direita e, entre as palavras ininteligíveis de uma conversa consigo mesma, sorria para ele. Seu pai parecia ainda mais velho e frio agora, e o chamava pra perto. Ele foi, atordoado, as flores ao redor já murchas espirrando um perfume de enxofre e morte, acompanhando entristecidas o trilhar de dois pés quentes que não sairiam mais daquele lugar. Parou, defronte ao pai, aquele velho asqueroso, e sentiu-se febril. Da terra vinha um calor tão intenso que a única causa em que ele poderia pensar era sinistra e se chamava “Inferno”. Ele desmaiou, o corpo fervendo bateu na terra produzindo um baque abafado, e seu pai gargalhou insanamente. Titia, sentada no entorno de ferro da varanda, continuava a rir, insuportável, fitando encantada as mãos sujas com o sangue do ouvido do sobrinho enlouquecido.

Um comentário:

Ana T. disse...

Ca-ra-lho.




Porra, Tainah, um dos meus temas favoritos! Conselho: leia "Violino", da Anne Rice.