20.5.10

Gritei calada

Foi terrível. O lugar por si só já era macabro: um beco escuro, mal-iluminado, com lixo espalhado pelos cantos. Não sei por qual motivo meu cachorro fugiu e escondeu-se lá, mas o que vi deixou-me chocada.
Estranhei quando vi aquele grupo de homens encapuzados entrando lá, arrastando consigo uma mulher que gritava o porquê daquilo estar acontecendo, e porque ela foi escolhida, e segui-os. A jogaram no chão e ela chorava baixinho. Eu, imóvel e impotente, observava tudo detrás da lata de lixo.
Os seis homens tiraram seus capuzes, e o medo e a surpresa instalaram-se predominantes nos olhos da vítima. Eu senti medo por ela, e ainda mais quando a luz vacilante do poste refletiu na adaga que saiu do bolso de quem parecia ser o chefe do grupo. Ele era alto, forte, seus cabelos louros e seus olhos escuros – quase negros – jamais sairão de minhas piores lembranças.
Minha curiosidade levou-me à cena de um crime: uma jugular cortada, sangue pelo chão, lágrimas nos olhos da morta. A sensação de satisfação do grupo era explícita, eles até sorriam. Assim que foram embora, fui até o cadáver, que agora esfriava, sem vida. Me senti invasiva, mas remexi em seus bolsos, e encontrei uma flor, junto a um bilhete, que dizia: “Sinta o perfume desta flor pela última vez. Você traiu a seita e será executada”. No fim do bilhete, um carimbo com as iniciais LF.

Tenho medo até hoje de ser descoberta. Mas vim dar meu depoimento, não aguento carregar uma alma em meus ombros.

8.5.10

Coração do Morte

-Sabia que eu nunca acreditei? - ela disse. Eu fiquei ali, quieto, sentado junto a ela, abraçando seu corpo fraco e que já esfriava. -Nunca acreditei nessa história toda de que chegarias tão cedo pra mim. Mas chegaste, e eu não percebi. E és muito diferente do que dizem por aí e...
-Eu sei - interrompi-a.
Ela fitou-me com aqueles olhos castanhos muito grandes, que engoliam tudo o que viam pela frente. Olhos gulosos de curiosidade. Abriu a boca para falar-me mais alguma coisa, mas desistiu.
-Sei o que dizem de mim. - continuei. -Sei que mentem sobre a minha aparência, em todo lugar, e até inventaram aquela história de manto para que já não precisassem preocupar-se com meu rosto. E pela origem de meu nome, dizem-me em outro gênero. Não vejo nada de errado nisso, humanos sempre estão tão errados... Suscetíveis ao erro e à desgraça de minha vontade.
-Não quero ser uma desgraçada.
-Não foi tua culpa.
Por mais um longo tempo ela observou-me. Eu sentia ainda sua respiração e seu coração, e sentia seu corpo tremer em meus braços. Ela era tão minha agora, e eu sentia-me infinitamente cruel e covarde por usufruir de meu poder dessa maneira.
-Não pareces-me tão forte como pensava. Poderias ter interferido, e eu agora não estaria aqui.
-Realmente não o sou. Não posso interferir. Eu só aceito quem vem até mim, precisando ou não.
-Então ages ao contrário do outro. Pro outro, as pessoas que o aceitam. Tu, as pessoas são aceitas.
-Sim.
Ela sorriu e chorou ao mesmo tempo. E ficava ainda mais linda nessa confusão. Os cabelos negros desceram-lhe até a face e grudaram nas lágrimas. Afastei-os. Eu a entendia perfeitamente.
-Então, pra onde vou agora? -pediu-me, como se suplicasse por algo.
-A lugar nenhum. Deixarás de existir assim que eu despedir-me de ti.
-E por que ainda não o fez?
A pergunta flutuava no ar enquanto eu inventava alguma resposta. Nunca senti-me dessa maneira perto de um mortal.
-Tudo bem, podes pensar o tempo que quiseres, não importo-me de ficar contigo contanto que eu ainda exista por esse tempo. - ela disse. -Mas deixe-me olhar-te enquanto pensas?
Assenti com a cabeça. Ela olhava-me, pedaço por pedaço, pausadamente. Demorou-se em meus olhos, em meu pescoço, em minhas mãos.
-És tão bonito. Teus cabelos são negros iguais aos meus. Teus olhos, ainda mais escuros, acho que as pessoas podem perder-se dentro deles. Teus ombros, creio que estão assim meio tombados por levares tantas almas a lugar nenhum. Tuas mãos são quentes, diferentes do frio que sinto agora.
-É porque apaixonei-me por ti. É por isso que ainda não despedi-me.
Ela parou de falar. Não corou, por não poder, mas sei que sentiu a timidez gritando dentro de si.
-Isso muda alguma coisa? - pediu-me.
-Muda. Há muitas outras pessoas morrendo agora, e daqui a pouco muitas outras morrerão. E eu levarei mais tempo do que o normal para despedir-me.
-Isso atrapalha-te?
-Sim.
Calou-se, e percebi que pensava em algo.
-Então deixa-me perdida em teus olhos.
A ideia atingiu-me estrondosamente. Pela primeira vez senti medo. Percebendo minha demora a responder, ela perguntou:
-Não podes?
-Posso. Mas não quero. Sofrerias demais. Não sabes o que é ver tudo o que vejo, todos os dias, o tempo todo. E eu sofreria ainda mais, por saber que tu estarias a enxergar o mundo de outro jeito que não o teu. Não quero.
-Não importo-me. Já não peço, exijo que deixe-me em teus olhos.
Ela levantou-se, e encarou-me. Pensei durante algum tempo, mas não consegui suportar aquela dúvida, e atendi seu pedido.

Ela agora vive perdida em meus olhos. Durante as primeiras guerras, desculpei-me das milhares de almas por despedir-me de olhos fechados. Mas ela quis ver, então abri-os.
Eu nunca durmo. Nunca. Quando sinto falta dela, fecho meus olhos, e ela sempre está lá, toda para mim. Estou certo de que algum dia dormirei, e este então será o melhor dia de minha existência, pois sei que sonharei com ela. Sonharei com ela, com seus olhos castanhos, seus cabelos negros, seu sorriso e seu choro, e sonharei para sempre.