"E só faço escrever, desde pequena. Adoro inventar uma escrita. Um dia na escola, com meus sete ou oito anos, a professora passou um exercício. Era o de dividir as palavras em sílabas e a partir daí formar novas palavras. Eu já estava de saco cheio. Para desconsertar a moça, pedi para ir ao quadro escrever as que eu tinha formado. E escrevi pó, zoeira, maconha. E fui escrevendo mais e mais. Craque, tiro, comando leste, oeste, norte, sul, vermelho e verde também. Na verdade, naquele momento, eu já estava arrependida e queria voltar para o meu lugar. Se é que tenho algum. Mas escrever funciona para mim como uma febre incontrolável, que arde, arde, arde... A professora olhava querendo ser natural, a turma ria e eu escrevia. Gosto de escrever palavras inteiras, cortadas, compostas, frases, não frases. Gosto de ver as palavras plenas de sentido ou carregadas de vazio dependuradas no varal da linha. Palavras caídas, apanhadas, surgidas, inventadas na corda bamba da vida."
(trecho de "A gente combinamos de não morrer", do livro "Olhos d'água", escrito por Conceição Evaristo ♥)
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primeiro, vem o choro
ele sempre vem, e precisa vir
escorre tempestuoso
adentra cada raiz
é a lágrima a chave da armadura
várias lágrimas juntas, a armadura estoura com barulho no vácuo
ninguém mais escuta
por dentro
inicia-se
um recital
escolho palavras com dedos de pinças
molhadas de lágrimas
sem ferrugem apesar de tanto tempo de poemas
o choro vem primeiro
escorrem águas e palavras
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segundo, vem o sangue
depois de sorver toda água
não há deserto nem seca
é o sangue que escorre
os dedos rasgam-se em poemas, sangram sentimentos
essa é a hora que me entrego
é a vez de sangrar
quando abro veias e artérias por sobre um poema
quando flui sangue pelas coisas que faço
coração bombando
represa estraçalhada
é a hora da entrega
se me vê aos prantos e sangrando em palavras
tinta vermelha, tinta preta, tinta roxa
então me enxerga
me custa demasiado falar sobre muito do que sinto
escrever sempre funcionou
mesmo sabendo que tem quem escute melhor
essa é a hora da encruzilhada
ou quem escuta apanha as palavras e as lê e me enxerga
ou eu recito os poemas de dentro
num sarau
a água das palavras volta aos olhos ao serem ditas
é por isso que choro ao falar sobre qualquer sentimento que me habita
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(às vezes, vem o fogo
que pode ser vela a iluminar um canto do quarto
que pode ser incêndio em todos os cômodos
a espalhar-se pelas vizinhanças
essa é a hora da audácia
de lamber peles, tirar roupas, arranhar lençóis e colchões
os rasgos continuam
sobram brasas no chão, nas calçadas
cheiro de água, de sangue, de fogo e saliva
tinta escorrendo dos dedos)
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sempre vem o amor
combustível vital
está na água,
no sangue
no fogo
e em tudo mais
que (me) explode e transborda
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teço acolchoados da vida
costuro combinações de fios
fúria, raiva, medo, angústia, tristeza, abandono
alegria, excitação, amor, serenidade, fogos de artifício
escambando sentimentos
por carinhos,
água, sangue e palavras
rasgos nas costelas
poemas voam soltos pelo quarto, pela casa, pelas ruas
ser solta assim é parte do que sou
voando
pelo quarto, pela casa,
pelo sótão
pelas ruas
pousando nas flores
nos abraços das pessoas
nas ondas do mar
eu sou
poemas inteiros
de água, sangue, fogo, amor, palavras
intensidade
estradas, mergulhos, livros, dores, músicas, rebeldia, sonhos
cafés, estrelas, vinhos, liberdade, risadas, histórias, tempestades, desenhos
cores, bilhetes, manguezais, paciência, latinoamérica, empatia
rasgos
poemas
eu sou
poemas
inteiros
de água, sangue, fogo, amor, palavras