e, às vezes, nesse fluir da vida que acontece
o que acontece aqui dentro parece que reflete aqui fora
e o cinza do dia nascido
a gente pensa que é pra acompanhar
o cinza da gente
o cinza da gente
escrevo. e pronto.
escrevo porque preciso
escrevo porque estou tonta.*
hoje eu acordei e ao abrir a janela
sem bater a cara no vidro
eu assisti e contei, melancólica,
a pelo menos cinco coisas caindo
que sequer tive a chance de segurar
(ou será que só não quis?)
um avião
uma nuvem em forma de concha
uma chuva com cheiro de hortelã e menta
dois arco-íris trançados no céu
o avião caiu rasgando os arco-íris
molhado e embalado na chuva
a nuvem desfez-se em minha mão
eu tentei mordê-la, aflita
sentindo o avião rasgar coisas em mim também
em mim
o avião caiu rasgando os arco-íris
molhado e embalado na chuva, já sem cheiro
a nuvem de concha transformou-se em onda
durante um daqueles sopros bonitos de um vento de primavera
e eu senti seu gosto de mar na boca
juntando o que caiu espalhado no chão
a onda envolveu tudo em água e sal
embalou até o céu
e fez desabar na minha cama
eu só queria a sorte de um sono tranquilo
Quando o poema me anoitece
a aranha tece teias
(* "Razão de ser", Paulo Leminski)