O que ele faz aqui, em meio ao gramado ressecado de poucas chuvas, vestido muito mal e deixando o sol queimar a pele, com sede e sem ninguém pra segurar as mãos pra se sentir seguro? Ele sempre gostou dessa sensação de mãos-dadas e agora tudo o que sente é fome de atenção, de carinhos, de beijos. Senhor Sono há muito tempo o abandonou e os olhos claros ressecaram com o calor, estão fundos e o abismo que apresentam só fazem pensar em morrer antes de chegar ao solo.
Ele entrou por uma trilha que começava na rua vizinha transversal, subiu por um monte cheio de árvores fracas e retorcidas, rasgou as palmas das mãos agarrando-se aos obstáculos do íngreme caminho que o levou até o topo do morro. Quando chegou lá tudo o que encontrou foi um banco de cimento toscamente feito, e sua mãe grávida sentada e cantando melancolicamente. O frio que ele sentiu foi surreal e então tudo era sangue e gritos.
O caminho pareceu mais fácil de descer enquanto ele corria. Algum galho mais espesso atingiu-o fortemente no braço esquerdo e a cicatriz perdurou até agora. Ele vomitou o suco gástrico e desmaiou caído na rua, por cima das flores que minha tia plantou e cuidou com tanto zelo. Então ela me chamou, porque ele parecia algum amigo meu.
Mas não era ninguém. Eu não reconheci nada nele. Meus sentidos tão aguçados não sentiam nada - sem reconhecer visualmente, sem reconhecer a voz que em verdade era um suspiro, sem reconhecer o cheiro que explodia da roupa suada. Nada nele era pra mim e mesmo assim eu cuidei dele.
E então ele fugiu. Sumiu, no meio da noite de uma lua minguante e amarela, e sua mãe sangrada só sabia chorar e pedir a Deus que ele voltasse, por favor, que ele voltasse. E seu pai veio até mim e me deu um soco no meio da testa, abrindo uma fenda profunda, sua puta, olhe o que você fez.
Eu corri e esperei o sol voltar. E no meio do gramado ressecado de poucas chuvas, vestido muito mal e deixando o sol queimar a pele, com sede e sem ninguém pra segurar as mãos pra se sentir seguro, eu vi ele de novo. E quando ele me viu a gente só sorriu, porque era pra ser simples assim. Ele foi pro sul ou talvez pro norte, caminhando rapidamente. Eu peguei uma carona com um grupo de drogados e talvez esteja no noroeste agora.
Ninguém nunca mais vai saber da gente. E você não sabe de nada.
*"Mistério" vem do latim Mysterium e do grego Mysterion, “rito ou doutrina secreta”, de Mystes, “pessoa iniciada em segredos”, de Myein, “fechar”, porque ela metaforicamente fechava os olhos e a boca para não ver nem revelar os segredos que tinha aprendido.