1.2.11

Invisível

Era um vulto magro no meio da escuridão da tempestade que caía sem parar desde a semana anterior. Ela sentia os pulmões se retorcerem de dor, a tosse frequente voltando - a pneumonia não foi tratada do jeito certo, ela sabia. A roupa começou a encharcar-se enquanto ela virava a curva, descia o morro, passava em frente à igreja velha. E a água fria confundiu-se com o corpo dela parado no meio da rua, os olhos fixos em qualquer coisa imperceptível à frente. De tão molhados os tecidos chegavam a pesar mais do que ela, que pendia para os lados conforme o vento soprava.
Os pingos gordos da chuva ricocheteavam em seu rosto, em suas costas, em seus braços nus e em suas pernas à mostra por causa da roupa curta de verão, e isso a machucava. O perfume dela era embalado pelo vento e entrava pelas grades dos portões e fechaduras das portas e espalhava-se nas salas-de-estar quentes das casas bem-pintadas onde famílias felizes jantavam.
O barulho abafado de risadas e vozes permaneceu quando ela abriu arrastando um portão enferrujado perto do poste pintado de laranja até alguma altura, dando acesso a uma servidão, e isso a tranquilizou: continuava a não ser notada pelas pessoas ao seu redor. Um filete um tanto largo de água descia junto a seus pés, sujando-os de barro, e ela caminhava cuidadosamente sobre as pedras da ruela.
Aproximou-se da casa bem ao fundo, pintada de cinza, uma única janela na parede, escancarada. Na ponta dos pés, ela olhou pra dentro do quarto iluminado por uma luz azul-celeste. Lá dentro era diferente, ela sentia, lá dentro ela seria alegre. E tinha alguém sentado na cama, recostado na parede, ensaiando a melodia da música da noite.