Durante a madrugada o Senhor Pássaro Azul saiu de sua casa e passeou. Sentou-se em um banco e cantou até amanhecer. "Tristeza, de novo?". Não. Foi um canto tranquilo, e até um pouco feliz. O Senhor Pássaro Azul virou o bico pros lados e enxergou uma Senhora Árvore, sua casca grossa contava histórias bonitas do tempo que já passou. E viu uma Senhora Sol, senhora pro mundo onde ele estava assim como era pros cherokees, Senhora Sol cheia de vida, de fogo, vermelha-sangue. Sangue tão poderoso quanto os tantos litros jorrados pelas terras dos astecas, pelo Sol que pra eles é deus, que deixa um rastro de sangue no céu toda vez que a Noite chega. Noite que vem cheia de Estrelas, inúmeras, pontos de luz, meninas cobertas de pele e penas luminosas.
E o Pássaro Azul sentado no banco.
Dona Senhora Árvore remexeu-se sonolenta e espreguiçou-se. "Por aqui as estações andam ao contrário; certo que me parece que estamos no Norte, mas tenho a impressão de que no Norte não existem pitangas. Mas se não estamos no Norte deveria estar tão quente, Senhor Pássaro, você sabe, não é? E se tudo isso de fato está acontecendo, onde estão minhas flores?".
E o Pássaro Azul sentado no banco olhando ao redor.
Pintaram flores e estrelas e morangos no muro. Flores pra Senhora Árvore, e estrelas pra Noite que vem muito escura, pro céu ao alcance das mãos, e morangos pra meu pai que caminha manco com suas botas de borracha e que aos domingos me chamava pra dar banho nos dois dálmatas que eram meus amores. E que escreve e distribui poemas pelas ruas das cidades. E que me cuida quando tenho febre - e eu as tenho tão frequentemente...
E o Pássaro Azul sentado no banco viu outra árvore ao seu lado.
Seis anos e um joelho esfolado, um band-aid laranja no cotovelo também machucado na queda da bicicleta, uma tarde quente de verão. Uma criança corria ao longo da praça até a pitangueira. "Mamãe não me deixou comprar picolé de tutti-frutti daquele velho que vive por aqui... mas eu ainda tenho as pitangas". E subiu o mais alto que pode, até um galho quebrar e ela cair. Outro joelho esfolado.
E o Senhor Pássaro Azul escutou a Pitangueira choramingando, esquálida, esquecida.
"Eu penso que a estação logo muda, Senhora Árvore. Pois veja você, hoje eu cantei mais do que o costumeiro, e aquela criança vem sorrindo correndo pra cá em câmera lenta. Você sabe, não é? A Pitangueira está sorrindo também, veja você. E há flores por todos os cantos... e lá vem a filha do poeta comendo morangos, tropeçando pelas ruas, Caos em seus cabelos".
E o Senhor Pássaro Azul sorriu.
(E eu ordenei um "pause" porque a vida anda difícil.
E eu pintei um quadro porque parecia que tinha cheiro de felicidade.
E na minha memória tão fraca, tudo isso ainda existe. E flui e se mistura.
Tem um pôr-do-sol na minha geladeira.)
*"Distração" (latim)-"Pássaro" (latim)-"Azul" (árabe)
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