31.7.12

Aditi*

Daqui ela vê um deserto envelhecido. Há montes de areias por todas as partes e o vento chega frio, acariciando a nuca e arrepiando os pelos dos braços. O cabelo comprido, enrolado feito um novelo de lã sujo, brilha lindamente quando os raios de sol o tocam - o quartzo refletido é rosa, azul, roxo.
-Você é uma de minhas joias. - dizia papai, enternecido. -Você brilha debaixo do sol e brilha quando se faz noite muito escura, menina, porque você sorri demais.

 Papai foi à procura de flores pra ela enroscar nos cabelos sujos e nunca mais voltou.

O vô que morava na cabana da frente dizia que papai tinha afundado em um dos montes de areia e o sol secou toda a água do corpo dele. Que ele nunca mais voltaria, e se voltasse, seria um esqueleto. E que era pra ela parar de chorar, que daqui a pouco quem secava era ela.
O vô nunca foi um sujeito muito querido. Ele batia os nós dos dedos na testa da menina e falava que o toc toc significava cabeça vazia. Uma vez a menina zangou-se e saiu pelos cômodos aos berros:
-Eu não tenho a cabeça vazia! Eu tenho um céu dentro da minha cabeça! O senhor não sabe, vô, mas eu conto estrelas e as nomeio... E toda noite pelo menos mais umas trinta se exibem porque também querem nomes.

A mamãe vinha e dançava em voltas com ela, rodavam e rodavam até caírem de tontura e de tantos risos no chão dourado, a areia quente se fazia cama e os olhos fechavam pra um sonho em um jardim preenchido de cores.
Mamãe não sabia ler. Mamãe não falava do jeito que as pessoas acham que é certo. Mas ela era um anjo de bondade e sempre sabia qual nome a menina ainda não tinha usado às suas estrelas.

Certa noite a menina decidiu sair à procura do pai. Comeu a farinha feita de areia, junto ao bolinho feito dessa mesma farinha juntada com todo o suor de sua gente, e ao fim tomou dois golinhos da garrafa de vidro trincado que guardava as lágrimas do último choro chorado junto por todos no último enterro - porque água de chuva não há.
Colocou sua saia mais bonita e leve, a blusa que mamãe bordou, encheu-se de coragem e caminhou pra dentro da noite escura.

-Minha fia? - mamãe chegou à porta, o vento quente do aviso de tempestade balançando o vestido comprido, o tecido fazendo cócegas nas coxas finas - Acho que ocê tá se esqueceno de levá a lanterna.



*Personagem da mitologia hindu, é a deusa mãe do céu. Seu nome, em sânscrito, significa "livre, desimpedido, infinito".

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