Eu morava em uma casa que aos fundos tinha um campo de morangos.
Meus dois dálmatas ficavam acorrentados na parte da garagem.
Uma vez soltaram eles e eles fugiram, e logo depois assaltaram a casa.
Desse modo, a minha casa perdeu alguns copos e móveis
e eu perdi dois amores
- perdi também a inocência de jamais terem tirado de mim
de uma forma tão violenta
algo que eu amava.
(mas é como se eles estivessem sempre no portão daqui do prédio,
e ainda fizessem festa quando eu chego em casa depois de um dia inteiro ausente)
Até hoje eu já perdi muitas coisas mais. Quase sempre eu me perco no tempo
Porque o relógio pra mim é algo desgostoso,
que me controla e que não me liberta;
Que me prende em afazeres e horários e compromissos
que não me libertam;
Que não me faz andar na vida e que só sabe andar pra frente
com suas pernas-ponteiros
e que não me deixa fingir que Apolo ainda faz sombra pequena a meus pés.
Se fosse sempre meio-dia, e que esse dia fosse quarta,
e que eu só tivesse que escutar o vento passar sibilariando pelas minhas orelhas
Que o tempo fosse ameno e que existissem sempre mãos e dedos em laços e voltas
e Apolo escondesse em seus bolsos a senhora Despedida.
Quase sempre eu me perco no céu
Porque o céu me acolhe quando tudo vai bem
e quando ele vomita raios e sangue em forma de água
chorando a antropização em ultraescala que faz a terra sangrar também.
Que ele me acolha sempre, igualmente lindo e sereno independente dos temporais.
No céu que habitam as estrelas e os planetas e tudo que é muito maior do que nós,
todos os deuses e deusas que geraram o tudo,
as flores, os seres, os ventres,
os sonhos,
os sonhos
e os sonhos.
Que eu durma e não me sinta só.
Quando eu era mais nova, pisava nos morangos de pés descalços
e eles explodiam entre os meus dedos sujos de menina-esporo largada no vento.
Talvez eu tenha flutuado um pouco longe demais do chão escrevendo isso aqui.
Hoje eu te vi por aí e acho que meu estômago virou ao contrário.
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