8.5.10

Coração do Morte

-Sabia que eu nunca acreditei? - ela disse. Eu fiquei ali, quieto, sentado junto a ela, abraçando seu corpo fraco e que já esfriava. -Nunca acreditei nessa história toda de que chegarias tão cedo pra mim. Mas chegaste, e eu não percebi. E és muito diferente do que dizem por aí e...
-Eu sei - interrompi-a.
Ela fitou-me com aqueles olhos castanhos muito grandes, que engoliam tudo o que viam pela frente. Olhos gulosos de curiosidade. Abriu a boca para falar-me mais alguma coisa, mas desistiu.
-Sei o que dizem de mim. - continuei. -Sei que mentem sobre a minha aparência, em todo lugar, e até inventaram aquela história de manto para que já não precisassem preocupar-se com meu rosto. E pela origem de meu nome, dizem-me em outro gênero. Não vejo nada de errado nisso, humanos sempre estão tão errados... Suscetíveis ao erro e à desgraça de minha vontade.
-Não quero ser uma desgraçada.
-Não foi tua culpa.
Por mais um longo tempo ela observou-me. Eu sentia ainda sua respiração e seu coração, e sentia seu corpo tremer em meus braços. Ela era tão minha agora, e eu sentia-me infinitamente cruel e covarde por usufruir de meu poder dessa maneira.
-Não pareces-me tão forte como pensava. Poderias ter interferido, e eu agora não estaria aqui.
-Realmente não o sou. Não posso interferir. Eu só aceito quem vem até mim, precisando ou não.
-Então ages ao contrário do outro. Pro outro, as pessoas que o aceitam. Tu, as pessoas são aceitas.
-Sim.
Ela sorriu e chorou ao mesmo tempo. E ficava ainda mais linda nessa confusão. Os cabelos negros desceram-lhe até a face e grudaram nas lágrimas. Afastei-os. Eu a entendia perfeitamente.
-Então, pra onde vou agora? -pediu-me, como se suplicasse por algo.
-A lugar nenhum. Deixarás de existir assim que eu despedir-me de ti.
-E por que ainda não o fez?
A pergunta flutuava no ar enquanto eu inventava alguma resposta. Nunca senti-me dessa maneira perto de um mortal.
-Tudo bem, podes pensar o tempo que quiseres, não importo-me de ficar contigo contanto que eu ainda exista por esse tempo. - ela disse. -Mas deixe-me olhar-te enquanto pensas?
Assenti com a cabeça. Ela olhava-me, pedaço por pedaço, pausadamente. Demorou-se em meus olhos, em meu pescoço, em minhas mãos.
-És tão bonito. Teus cabelos são negros iguais aos meus. Teus olhos, ainda mais escuros, acho que as pessoas podem perder-se dentro deles. Teus ombros, creio que estão assim meio tombados por levares tantas almas a lugar nenhum. Tuas mãos são quentes, diferentes do frio que sinto agora.
-É porque apaixonei-me por ti. É por isso que ainda não despedi-me.
Ela parou de falar. Não corou, por não poder, mas sei que sentiu a timidez gritando dentro de si.
-Isso muda alguma coisa? - pediu-me.
-Muda. Há muitas outras pessoas morrendo agora, e daqui a pouco muitas outras morrerão. E eu levarei mais tempo do que o normal para despedir-me.
-Isso atrapalha-te?
-Sim.
Calou-se, e percebi que pensava em algo.
-Então deixa-me perdida em teus olhos.
A ideia atingiu-me estrondosamente. Pela primeira vez senti medo. Percebendo minha demora a responder, ela perguntou:
-Não podes?
-Posso. Mas não quero. Sofrerias demais. Não sabes o que é ver tudo o que vejo, todos os dias, o tempo todo. E eu sofreria ainda mais, por saber que tu estarias a enxergar o mundo de outro jeito que não o teu. Não quero.
-Não importo-me. Já não peço, exijo que deixe-me em teus olhos.
Ela levantou-se, e encarou-me. Pensei durante algum tempo, mas não consegui suportar aquela dúvida, e atendi seu pedido.

Ela agora vive perdida em meus olhos. Durante as primeiras guerras, desculpei-me das milhares de almas por despedir-me de olhos fechados. Mas ela quis ver, então abri-os.
Eu nunca durmo. Nunca. Quando sinto falta dela, fecho meus olhos, e ela sempre está lá, toda para mim. Estou certo de que algum dia dormirei, e este então será o melhor dia de minha existência, pois sei que sonharei com ela. Sonharei com ela, com seus olhos castanhos, seus cabelos negros, seu sorriso e seu choro, e sonharei para sempre.

3 comentários:

Cleo Theodora disse...

CARALHO TAINAH! É de longe a coisa mais linda que já li, parabéns, porra, muito foda. parabéns mesmo, aaaaaah hahaha que lindo. morri

Helena disse...

Ai, quem dera ter essa capacidade de transcrever. Parece-me que a morte é uma fruta agridoce.
LINDÍSSIMO!

Bruno ;D disse...

Lindo, lindo, lindo!
Eu amo ler sobre a Morte lírica, acho ela magnífica. Adorei tua pequena visão, e tua convicção voltada pro ateísmo, de que depois daqui não há mais nada.
Cabelos negros e olhos negros, em uma beleza fria e encantadora.
A Morte, simples, mas bonita pra quem tenta enxergá-la.
Suicide thoughs mode [off]